13 December 2020

O amor é prolixo
Profilaxia prolífica
Verborreia contínua
Apneias e suspiros
Cogitações a meias
E disparos assassinos
Mordidas e fugas
Misteriosas criaturas
Uma floresta às escuras
Ninho de acasos
Pirilampos mágicos
Chaminés a fumegar
Terramoto inesperado
Levantando paredes
Desenhando estepes
O amor é uma montanha
Não, é um imenso oceano!
Tsunami monstruoso
Varrendo a terra seca
Cratera profunda 
No fim do mundo
Sulco de ternura fresca
No deserto infinito
Antídoto, vacina
Elixir calmante
Realidade paralela
Cabeça ao sol, na lua
Coração a brilhar
Poeira de estrelas
Debaixo do tapete
À espera de ser aspirado
O amor é prolixo
- É para o lixo!
O amor é para reciclar.



 



6 December 2020

A razão

E não é que tinhas razão?
Tu, sim, tu! 
Eras tu quem a tinha
E não eu.
Desde o início...
Sabias tudo.
Sabias melhor.
E eu nada sabia.
E ainda não sei.
E, pior ainda:
Não quero saber!
Porque, no fim das contas,
Sempre soube
Que essa razão toda 
Que tu já tinhas
Só me faz dar-te motivos
Para a continuares a ter.
Fica com ela.
Guarda-a bem.
Ou deita-a fora.
O que importa
É que nos dê 
Vontade de rir
Ou chorar.
Nunca mais
Para sempre.
Um só
Pó.

4 December 2020

A Floresta das Palavras

Na floresta das palavras
Cabem veados,
Líquenes e fadas.
Cabem frutos e folhas;
Estrelas cintilantes
Pela lua ofuscadas,
Fetos e ramos de raios de luz
Entre sombras mal recortadas.
Cabem lobos malditos
E duendes e mafarricos,
Aranhas tecedeiras
E gotas de orvalho ordeiras,
Pousadas delicadamente
Em suas teias.
Cabem felinos meigos
E répteis esguios
E pássaros 
De fogo e de breu,
Coroas de espinhos
E de flores,
Regatos e chilreios de Orfeu...
Na floresta das palavras
Cabem realidades múltiplas
Imaginários infinitos
Clareiras de silêncio
E encruzilhadas de desvios.
Na floresta das palavras 
Cabem os homens,
As mulheres
E todos os seres
E criaturas
De todos os eus.
Só não cabe o teu
Nem o meu. 


As caixas

Lá na casa do homem bravo
Estava tudo bem engavetado:
Dissabores em cima
Sabedoria em baixo
Medos escondidos num canto
Amores encostados para o lado.
Não havia ali espaços vazios
E tudo era devidamente etiquetado.
O problema era tanta humidade e o pó
Que estava a ficar descontrolado!
Pobre coitado, o desgraçado
Já não tinha mais mãos a medir 
Pois, além de ser organizado,
Gostava de tudo muito asseado.
Foi então que decidiu
Pedir ajuda à mulher
Que morava, não muito longe,
Lá do outro lado do lago:
- Oh vizinha, 
Não me dá uma mãozinha?
Tenho as minhas caixas a ganhar mofo,
Vai para ali um grande estrago.
- Ora então bom dia, caro vizinho!
Bons olhos o vejam fora de casa!
Não fora o fumo na chaminé
E alguma luz na janela
E diria que já nem vivia aqui ao pé...
Julguei que tinha ido de vela...
Mas deixemo-nos de desvios.
Vamos lá ao que interessa:
Organizar e limpar essas caixas,
Antes que apodreçam depressa!
E, sem mais demoras, 
Cada um andando sozinho,
Lá se meteram os dois ao caminho,
Lado a lado,
Primeiro a passo, depois a nado,
Atravessando a floresta e o lago,
Rumo ao arrumo bafiento,
Tão organizado quanto bolorento.
Ao lá chegarem,
Mal abriram a porta,
Logo aquele cheiro frio, 
Mórbido e vazio
Provocou um enorme calafrio
Que os encheu de desalento.
Deteve-se a mulher logo ali à entrada,
Sem grande espanto 
Mas um tanto desanimada.
E, após um grande suspiro,
Tomou o rosto do homem nas mãos
E assim lhe disse baixinho:
- Meu querido vizinho, 
Tenho-lhe tanto carinho...
Bem que o queria ajudar.
Mas isto já não tem remédio,
Não há aqui nada para arrumar.
Das caixas já não resta senão o triste mofo.
Não são mais do que velho entulho
Para deitar fora ou para queimar
E fazer uma grande festança
Com muito vinho, muito barulho
E tanta, oh tanta dança!
(Ai como seria bom rememorar...) 
Nisso sim, vizinho, que o posso apoiar.


Meu amor,
A saudade não é cobrança.
É rendição e desalento
Perante a vã tentativa 
De encurtar a distância
De encolher o tempo.

Meu amor,
A saudade não é cobrança.
Não é pressão nem ataque
Nem tampouco alguma 
Forma de arrogância
Talvez sim de algum desgaste.

Meu amor,
A saudade não é cobrança.
É mimo sentido, perdido
É partilha de afecto,
Uma réstia de esperança
Pelo carinho esquecido.

Meu amor,
A saudade não é cobrança.
É só uma dor muito lusitana
De quem vive como 
Se não houvesse amanhã,
Sem planos ou pontos de fuga,
Com o coração na boca 
E o horizonte azul ao longe,
Bem lá ao fundo,
Infinito, inequívoco, inatingível...


2 December 2020

Oh ciano profundo
Mar infinito
Por vezes, maldito
Manto de espuma colossal
Monumento eterno e natural
Afagando imaculado
O extenso areal
Desenhas espelhos celestes
Onde te admiras glorioso
E demoras saudoso
Sedoso
Frio
Enorme
Grande massa disforme
Azul solar
Canto de embalar
Ao sabor do luar
Tuas ondas revolvem 
O meu olhar
Enrosco-me no teu colo 
Majestoso
E deixo-me levar...


Poemas (Quase) Esquecidos ao Sol

Pelas frestas das pestanas
Espreita o azul celeste
De mansinho
Entre as finas cortinas negras
Humedecidas 
Por cristais de sal cintilantes
Que reflectem os raios quentes.
Pálpebras ruborescidas
Por finos regatos de sangue
Que desenham sinuosos 
Mapas coloridos num céu só meu
E eis que os salpicos refrescantes das ondas
Vêm re(a)cordar a vida que palpita
Neste casulo aconchegante
Onde habita esta alma curiosa
Impaciente por eclodir
E de novo se fundir 
No azul profundo do mar.

--

Bóia 
Cheia de sentidos
Metade quente, metade fria
Navega ao sabor da corrente
Flutuando empurrada
Pelo vento lento
Pequeno corpo oscilante
Ondulando para trás
E para diante
Saboreando cada instante
Em que tudo se mistura
Num longo beijo 
Que perdura.


14 November 2020

O amor cansa

O amor cansa
Pelo tempo que demora
A encontrar
A reconhecer
A entender
Toda aquela espera
Aquele deserto
Tão vazio quanto frio
Da solidão
Que nos envelhece
E endurece
Ai mas como cansa o amor
Pela tamanha energia 
Que consome
Quando finalmente
Aparece aquele homem
Que faz de novo tudo brilhar
E a pobre da alma 
Volta a acreditar
E lá segue cega 
Toda enamorada
Entusiasmada
Acelerada
Direitinha que nem um fuso
Para de novo se espetar
E é por isso que o amor cansa
De ligação em ligação
Lá vai andando
Feito criança
Passando dos braços de um
Para os olhos do outro 
E mais outro e outro e outro e outro e outro e outro e outro e outro e outro e...
Qual beija-flor colorido
Se lambuzando no arbusto florido
Inebriado pelo perfume e pela cor
Qual barquinho flutuando sem sentido
À deriva no mar das emoções
Quebrando as ondas 
Como quem quebra corações
Apenas para terminar afundado
Inundado de ilusões 
Rodopiando até ao fundo
Como quem dança
Uma dança infinita
- Oh dança maldita!
Com o mundo todo a girar
Sem nunca parar
Até acabar tonto  
Virado de pernas para o ar
E é vêr aquelas almas errantes
Esgotadas, baralhadas
Ainda assim, entusiasmadas
- Quais lobos das estepes
Transformados em carneirinhos 
De espuma e salpicos salgados
Lá vão em debandada
Rumo a essas paragens celestiais
Tão longínquas quanto belas
Onde tudo é paz e temperança
E o amor é ainda uma dança
Mas já não cansa.
 
 
 

9 November 2020

As Coxas Doridas

As coxas doridas
Coloridas
Pelos tons de quem passou
Como vento quente de Verão
Levantando a areia da praia
Num turbilhão.
As coxas doridas
Exauridas
Pelas noites mal dormidas 
Bem acordadas
Do tempo distraídas
As coxas doridas
Pelos músculos 
Que não são seus
Nem teus
Mas do mundo todo
A girar
As coxas doridas
Desprotegidas
Sem medo 
Sem mistério
Sem pena
Sem foco
As coxas doridas
Pela tecnologia
Tão simples
Dos corpos
A amar.

18 October 2020

O Riso dos Outros

No escurinho do cinema,
Soltou-se aquela gargalhada
Tão sentida, tão plena!
E, de repente, parecia
Que tudo estava igual,
Que o mundo não mudara.
Estar ali afinal
Ainda era normal.
Naquele breve instante, 
A máscara do tempo caiu
E todos podíamos ver 
Aquela cara enrugada, 
Contorcida, iluminada 
Pela grande tela brilhante
E por aquele riso contagiante
Que inundava a sala
E nos devolvia
Uns aos outros.
 


27 September 2020

O Que Arde Cura

Cara Maria Adelaide,
O que arde cura e tu sabias.
Não foi preciso que to dissessem.
Estava no fundo do teu coração,
Enterrado debaixo de festas e ostentação.
Uma vida tão perfeita,
Tão bem arrumada, embrulhada,
Tão direita,
Era afinal a tua prisão,
Cheia de um grande vazio,
Entre paredes frias de aflição.
Qual corpo acorrentado
Afundavas-te, afogavas-te
No negrume sufocante sem fim
De ti própria.
Mas eis que te soltaste enfim,
Animada pelo calor de uma paixão.
E nadaste como quem voa
E abandonaste a tua feia escuridão.
Passaste de invejada a doente,
De madame a puta,
De intelectual a louca,
De rica senhora a pobre coitada...
Porque é isso que acontece
Às que encontram a sua cura
E descobrem  que o mistério de todas as coisas
É apenas um clarão.
Tu viste essa luz que se chama vida,
Escolheste arder na tua própria decisão
- Porque antes queimar pelo fogo
Do que pelo gelo da solidão.
E qual sol incandescente,
Inexorável, indomável, resplandecente
Queimaste, derreteste e abafaste,
Todos os que te queriam controlar.
É que o que arde cura.
Tu entraste em combustão
E deixaste uma bela lição. 


11 June 2020

As galinhas

As galinhas chegaram
Em dia de manifestação.
Vieram num caixote,
À hora da reunião.
Conheceram a capoeira nova,
Ainda não terminara o relatório.
Bateram as asas no quintal
Em pleno prime time noticiário.
E bicaram minhocas e bichos
Durante um registo no notário
E mais um conto do vigário.
Mal se pôs o sol, recolheram
- Era hora de fazer o jantar.
De madrugada, puseram um ovo,
Que às redes sociais foi parar.
E exploraram o seu novo ambiente
Sem pensar ou questionar
Como haviam ido ali parar
Ou como a terra continuava a rodar.
- A quê?! A rodar?!
Eram galinhas felizes
- Assim preferimos acreditar,
Cujo futuro era incerto
E ninguém podia adivinhar.
E, entre couves bicadas, cacarejos,
Gatos à espreita, ovos chocados,
Banhos de terra, plumas sacudidas,
Mal sabiam que ensinavam
Mais do que qualquer deus, mestre ou cientista,
Livro, site, jornal ou revista,
Apenas por existirem
Em todo seu esplendor,
Saboreando o momento
Sem qualquer pudor,
Disfrutando a vida,
Sem nenhuma dor.

26 April 2020

VOCÊ É Que Não Entende Nada + Quotidiana

VOCÊ É Que Não Entende Nada

Quando eu chego em casa nada me consola
Você está sempre frito
Lágrimas nos olhos, de tanta maconha
Você é tão bonito
Você manda vir a pizza, eu como
Me bota sobre a mesa, eu tomo, eu tomo
Eu tomo, eu tomo, eu tomo
Você não está entendendo
Quase nada do que eu digo
Eu quero ir-me embora
Eu quero é dar o fora
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo
Eu me arrumo, eu limpo, engomo, eu não aguento
Você está tão curtido
Eu quero tocar fogo neste apartamento
Você não acredita
Traz sua roupa imunda, eu lavo
Me deixa toda acesa, eu tomo, eu tomo
Eu tomo, eu tomo, eu tomo
Você tem que saber que eu quero correr mundo
Correr perigo
Eu quero é ir-me embora
Eu quero dar o fora
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo

+

Quotidiana

Todo dia ele faz tudo sempre igual
Me acorda às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ele diz que é pra eu me cuidar
E que eu sou sua única mulher
Diz que volta na hora do jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E acendo outra boca do fogão.

Seis da tarde, como era de se esperar
Ele chega e me acena do portão
Diz que está muito louco pra deitar
E me beija com a boca de machão

Toda noite ele diz pra eu não me afastar
Meia-noite ele jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E despeja em meu corpo sua dor

Todo dia ele faz tudo sempre igual
Me incomoda às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ele diz que é pra eu me cuidar
E que eu sou sua única mulher
Diz que volta na hora do jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão

Seis da tarde, como era de se esperar
Ele chega e me espreita do portão
Diz que está muito louco pra deitar
E me beija com a boca de machão

Toda noite ele diz pra eu não me afastar
Meia-noite ele jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E despeja em meu corpo sua dor

Todo dia ele faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

19 March 2020

Contagion

The virus came with the wind
Sweeping streets and lives
Panic shut behind doors
Hope built behind screens
People deprived from touch
Touch touch touch
We touch everything
Every time, everyone
From our face
To our hearts
To touch is to be alive
Yet, isolation cures
Yet, isolation kills
We are not our bodies
Wash your soul
As you wash your hands
Wash all viruses away
To infect only love
And stay in touch
To stay alive.

9 March 2020

A Sorte do Artista

23/ 08/ 2011

Ser artista é ser abençoado. É ter uma doença tão grave que é a própria cura. É ser mais alto, dizia a outra. Tão alto que não se chega e nem cabe em lado nenhum. Tão alto que se desequilibra e tropeça e cai. É ser desequilibrado. É sentir tanto que nem sente mais nada. É hummmmmmmmmmmm... Do outro lado do aquário. Espelho do espelho. A gritar tanto que se acaba surdo, fechado no próprio mundo. Autista. Auto-ista. Ego. Isto. Ou aquilo. Eu sei lá o quê! Ser artista é sei lá o quê que não se entende nada do que anda para ali a fazer. É ter uma sorte. Sem saber a sorte que tem. Que sorte... Morte... Que morte? O artista não morre. O artista está morto antes de morrer. Porque vive tanto que não vive nada. Muito para além da vida. Sem medo, lá vai ele. Que sorte a do artista!

26 January 2020

Universal calling

Today you called.
Everything stopped.
And suddenly the world
Was at peace again.
My breathing calmed,
Time passed slower
And that enormous distance
That keeps us apart
Was not ever there.
Today you called
And I realised I am
On the right way,
A way of love
A way from me
A way for you
To me.

Ontem, vi-te.
Não serve para nada
Ver-te.
E, no entanto,
Activa-me o sistema nervoso
Mais do que um café da manhã.
Mas até eu devia era deixar
De tomar café...
Porque realmente aquilo
Não serve para nada.
Só nos deixa nervosos
E dá-nos cabo das entranhas.
É assim como ver-te.
Por falar nisso,
Ontem, vi-te.