4 December 2020

As caixas

Lá na casa do homem bravo
Estava tudo bem engavetado:
Dissabores em cima
Sabedoria em baixo
Medos escondidos num canto
Amores encostados para o lado.
Não havia ali espaços vazios
E tudo era devidamente etiquetado.
O problema era tanta humidade e o pó
Que estava a ficar descontrolado!
Pobre coitado, o desgraçado
Já não tinha mais mãos a medir 
Pois, além de ser organizado,
Gostava de tudo muito asseado.
Foi então que decidiu
Pedir ajuda à mulher
Que morava, não muito longe,
Lá do outro lado do lago:
- Oh vizinha, 
Não me dá uma mãozinha?
Tenho as minhas caixas a ganhar mofo,
Vai para ali um grande estrago.
- Ora então bom dia, caro vizinho!
Bons olhos o vejam fora de casa!
Não fora o fumo na chaminé
E alguma luz na janela
E diria que já nem vivia aqui ao pé...
Julguei que tinha ido de vela...
Mas deixemo-nos de desvios.
Vamos lá ao que interessa:
Organizar e limpar essas caixas,
Antes que apodreçam depressa!
E, sem mais demoras, 
Cada um andando sozinho,
Lá se meteram os dois ao caminho,
Lado a lado,
Primeiro a passo, depois a nado,
Atravessando a floresta e o lago,
Rumo ao arrumo bafiento,
Tão organizado quanto bolorento.
Ao lá chegarem,
Mal abriram a porta,
Logo aquele cheiro frio, 
Mórbido e vazio
Provocou um enorme calafrio
Que os encheu de desalento.
Deteve-se a mulher logo ali à entrada,
Sem grande espanto 
Mas um tanto desanimada.
E, após um grande suspiro,
Tomou o rosto do homem nas mãos
E assim lhe disse baixinho:
- Meu querido vizinho, 
Tenho-lhe tanto carinho...
Bem que o queria ajudar.
Mas isto já não tem remédio,
Não há aqui nada para arrumar.
Das caixas já não resta senão o triste mofo.
Não são mais do que velho entulho
Para deitar fora ou para queimar
E fazer uma grande festança
Com muito vinho, muito barulho
E tanta, oh tanta dança!
(Ai como seria bom rememorar...) 
Nisso sim, vizinho, que o posso apoiar.


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