30 May 2021

Gostava

Gostava de ter escrito este poema.
Um dia, hei-de escrevê-lo.

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THE PEACE OF WILD THINGS
by Wendell Berry

When despair for the world grows in me
and I wake in the night at the least sound
in fear of what my life and my children’s lives may be,
I go and lie down where the wood drake
rests in his beauty on the water, and the great heron feeds.
I come into the peace of wild things
who do not tax their lives with forethought
of grief. I come into the presence of still water.
And I feel above me the day-blind stars
waiting with their light. For a time
I rest in the grace of the world, and am free.




13 May 2021

O meu pai

O meu pai é uma criança
Com quem brinco 
Desde o momento em que nasci
E por isso nunca mais cresci
É um contador de disparates
Um inventor de coisas raras
Um despertador de curiosidades
Um poço de conhecimento
Mesmo quando a memória lhe falha
O meu pai é um chato
Que me arrelia
Desde que sou gente
E me persegue com lições
Preconceitos, doutrinas
Convicções bacocas 
Ou idealismos indigestos
O meu pai é um sonhador
Que me chapinha nas poças da chuva
Debaixo de um impermeável
Todo molhado e cheio de cor
Ou me encharca de lama
E minhocas e bichas-cadela
Para me devolver à terra
Ou me empurra ao mar
Até chegar bem lá no fundo
Até quase me afogar
Para me ensinar a lutar
O meu pai acha que substitui
A companhia do amor
Por um televisor...
Ou as crises de meia-idade
Com projectos a multiplicar
O meu pai não é nenhum herói
Ilustríssima vedeta 
Ou prémio Nobel da física
Da literatura ou da aritmética
E também não é nenhum monstro
Nem selvagem nem ditador
O meu pai é um homem normal
É uma pessoa do seu tempo
Para o bem e para o mal
Cheio de defeitos e virtudes
Com as suas angústias, anseios
E frustrações e muito amor
Como todos nós, no fundo
É o melhor pai do mundo.

9 May 2021

A poesia que passa

A poesia é como o vento
Quando menos se espera
Levanta-se no ar
E faz a cabeça rodopiar
Entrelaça-se no coração
E desperta sorrisos
Ou põe-nos a chorar
É que a poesia 
Não conhece o tempo
Mas abraça o momento
Que inspira e desaparece
Enquanto se acorda
Se caminha
Ou se adormece
Enterrada na rede
Sentada à secretária
Entre amigos na praia
Ou às voltas no fogão
Ou entre as folhas
Das árvores e das plantas
Que se agitam na floresta 
Cheia de mistérios
Ora suave dança ondulante
Ora presença inquietante
E lá está a poesia
Entre sombras e reflexos
Em noites luminosas
Ou no fundo oceânico
Alguns poemas são apanhados
Pobres coitados
E acabam aqui sozinhos
Ou aos punhados
Uns bem bonitos, animados
Outros melhor fora
Estivessem calados
Mas há ainda aqueles,
Os outros
- Oh tantos!
Que são levados 
Pela correria da vida
Pela distracção involuntária 
Pelo acidente inesperado
Pelo sono implacável
Pelo sol radioso da manhã
Pelos salpicos das ondas
Pela chuvinha pardacenta
Ah, o cheiro a esteva, 
A terra que acorda molhada, 
A urze no monte, o suor, a maresia
E lá vem ela de novo 
A poesia...

A hora das sombras

Àquela hora
As sombras levantam-se
E começam a dançar
Oscilantes
Impõem-se
Deambulando no ar
Desenhando rastos
Desalinhando formas
É que àquela hora
As sombras acordam
Espreguiçam-se
Esticam-se 
Revelam-se
E escondem-se
Vagueando 
Entre raios e coisas
Tremendo sem saber
O que é frio ou temer
Que aquela hora passe
Porque àquela hora
As sombras são
--
Vestígios da luz 
Que ilumina
O seu reflexo
Ao contrário