22 September 2022

Poema de Ninar a Minha Velha

Há uma velha a nascer em mim 
Muito desejada mas ainda pequenina
Já cheia de maleitas e achaques
Muito dada às mezinhas e aos ataques
De risadas, esconjuros e disparates
Ela ainda se sente uma menina
Que põe a mão no chão
E põe a mão no coração
É uma velhinha querida e rabina
Dança à espanhola e toca concertina
Também dá meias voltas e levanta a saia
Porque do que ela gosta mesmo
É de andar com as outras na gandaia.
Agora também tenho varizes
Era só o que me faltava
Pois se já não bastava
A espondilite anquilosante
E sua dor excruciante 
Que percorre a espinha
De montante a jusante
Ou o raio do olho visgolho
Que vira o mundo de esguelha 
Salvo quando se acende centelha
Intenso clarão, relâmpago ou corisco
Fintando a maleita por trás da orelha
Eu devo é estar a ficar velha
Mas se me sinto ainda fedelha
Olha, afinal era só um cisco
E lá se acentua
A ligeira escoliose
Atiça-se a hérnia discal 
Destrói-se mais um bocado a lordose
E eis que salta mais uma protusão
Ao menos não há sopro neste coração
Acrescentam-se é os desaires, angústias e crises
Pois não é que agora também tenho varizes?

17 September 2022

O Teatro

O teatro é um amador
Caixinha de mistérios e surpresas
O derradeiro impostor
Recosto-me na escuridão
E deixo-me encantar
Ali posso tudo
Posso cantar e voar
Posso matar e berrar
Posso rir descontrolada 
Às gargalhadas
E até posso chorar
Com as vidas dos outros
Que ali são minhas também
E sempre sem me cansar
E no final ainda aplaudo
Faço vénias e encores
Desfaço-me em agradecimentos
Sorrindo aos espectadores
Depois saio altiva e sobranceira
Pela porta principal
Sem passar nos bastidores
E olho de esguelha
Quem pela rua despreocupado se passeia
Pobres ignorantes inconscientes
Que não se atrevem sequer a espreitar
Aquela meta-vida brilhante
Implosão contínua de glamour
Ali prontinha a rebentar com tudo
Onde se finge o que já era verdade
E nos convencemos do próprio engano
Qual labirinto infinito de trapaças
Em queda livre vertiginosa
De onde afinal nunca saímos
Porque mesmo antes de entrar 
Já lá estávamos a contracenar.

13 September 2022

O Período

Sangue viscoso e quente
Escorrendo pelas pernas
Lentos coágulos
Sujando lençóis e cuecas
Gastando o meio ambiente
Fechado em saquinhos 
De plástico estridentes
Desenhando espirais encarnadas
Nas águas paradas
Do banho, da latrina
E mais uma toalha ensanguentada
Fina e segura é um raio que me parta!
E o copo que aleija 
E nunca fica direito
E cola-se às paredes
E faz vácuo
E enfiou-se lá para dentro
Escapando ao contorcionismo
Dos dedos suplicantes
Mais um tampão
Oh não!
E o papel higiénico que se gasta?
E o juízo e a alegria
Tudo é miséria 
Tudo é desgraça
Porque o que é nojento
Não é o período
É o raio desta neura dorida
Que nunca mais me passa!

O Final Feliz

Era uma vez uma menina
Bem esperta e rabina
Olho de pirata 
E nariz de bruxa
Que adorava histórias
Como as outras meninas
E como as outras meninas
Tinha as suas preferidas
Sementes voadoras
Belas adormecidas
Dragões solitários
Fadas trapalhonas
Príncipes mãos-de-tesoura
Sereias sem cabeça
Tudo o mais redondinho
E perfeitinho, esqueçam!
Como todas as meninas
Esta também cresceu
Aos ziguezagues e cornucópias
Uns dias bem disposta
Noutros com o período
Por vezes, enganada
Lá seguia em linha recta
Para logo se desequilibrar 
E espetar de trombas 
- A insurrecta!
Mas logo voltando
A voltear
As voltas da vida
O mar e mar
A ir e voltar
Serpenteando o azar
Para acabar a poisar
Num palácio de guloseimas
Onde se exaltavam banquetes
Celebravam festas
Comemoravam pândegas
E digladiavam teimas
Enquanto no jardim encantado
Dragões tresloucados
Punham ovos já cozidos
E pela escadaria encaracolada
Corriam gatos e vassouras
E fumos e cenouras
- Cenouras?!
Sim, cenouras e esqueletos
Aranhas em frascos
E comboios de vaca-louras
- E um príncipe?
Não, esses não moravam lá
Mas estavam as amigas
De nariz postiço 
E pálas em riste
Que enfiavam nos olhos
Sempre que a menina 
Se sentia triste
- E que mais?
E mais nada
E já bem chegava
Para grande final
Não estava nada mal
Até porque, pelos vistos,
A história ainda continuava
- Aplausos.




12 September 2022

O javali

Está aqui alguém!
A folhagem ofegante
Sacudindo agitada
O salto do susto
Valente coração
Aos pulos
Num clarão 
De lanternas
Em riste
Consegues vê-lo?
Passos pesados
Correm ao largo
Um ronco profundo
Do fundo do breu
Está ali!
Onde? Não vejo!
É um javali!
Atrás do tronco!
Faz barulho
Não desistas
Sai, bicho
Fora daqui
Tremem as pernas
Feixes de luz 
Agitados
A falta do ar
Urros e guinchos 
Em dança primordial
Na noite cerrada
Da serra 
Que encerra 
E acolhe
Todos os bichos.

11 September 2022

Limbo

Este meio de nenhures
Nem acima nem abaixo
Nem noite nem dia
Nem fêmea nem macho
Nem escama nem penacho
Esta terra de ninguém
Nem dura nem mole
Nem clara nem escura
Nem fria nem quente
Nem frágil nem resistente
Este não lugar
Cú de Judas
Que ninguém conhece
Mas por onde todos passam
Um dia
Hoje é aqui que pertenço
Sem saúde nem doença
Sem ausência nem presença
Sem maldade ou inocência
Sabedoria de sanatório
Para lá das portas do Éden
Afinal o que fica é o purgatório
Limbo malandro, familiar
Já que te encontro
Desta vez, deixo-me ficar
E observo a espiral infinita
Do teu tempo movediço
Do teu mar de sargaço e de enguiço
Ora apreciando a lenta viagem
Ora tropeçando e escorregando
Na voraz vertigem,
Que me engole inteira
Na minha própria rasteira
Fez dói-dói
Já passou?




10 August 2022

A Anita desviou a vida
Numa sexta-feira
Que não era treze
Nem fria nem triste
Era uma sexta-feira
De sol, de férias, de calor
Era uma sexta-feira
Cheia de cor e cheiros e sabor
E memórias das histórias
Sob as estrelas 
Longínquas, solitárias
Que já não lembro
Mais ainda imagino
O céu azul limpo
Reflectindo salgado 
No mar transparente
O corpo embalado pelas ondas
Peixinhos atrevidos 
Mordiscando os pés
Ai! 
Lambo o rosto molhado
Dói-me o coração
Porque a Anita desviou a vida 
Qual cortina incómoda
Ali à boca de cena 
Onde a terra acaba
O mar começa
E o poema aplaude e grita:
Fica, Anita, fica!  



para a Ana Luísa Amaral (1956-2022)


O Poema Inacabado

A vida é a água
A esgueirar-se pelas frinchas 
Da parede imaculada
Enegrecendo invisível
Até ao podre
São os pêlos brancos
Do gato vadio
Agarrados à malha preta
Do melhor vestido
É este mistério descontrolado
Desconcertante, cruel, desmiolado
Que nos inspira e atormenta
O quotidiano espiralado
O poema inacabado...

14 May 2022

Oh a poesia cândida
Entre comichões e aflições
Noites mal dormidas
Consumições
Pudesse ser eu pomada
Mezinha, remédio, unguento
Em vez de poeta apaixonada
Refém da lamúria e do tormento
E talvez este prurido recorrente
Estancasse sua penosa torrente
E não mais eu sucumbisse
A tão sarnento talento!


O amor se arrefece
Desaparece. 
É que o amor 
Quer-se quentinho
E aconchegado
Cheio de carinho 
E bem tratado
Não encostado
Abandonado
Enxovalhado
O amor precisa 
De mimo e de sal
Requer atenção
Dedicação 
Devoção íntima 
Universal 
Caso contrário, arrefece
Enfraquece
Esmorece
E desaparece
- Mas não acaba.

28 April 2022

E é quando o coração volta a fechar
Que inspiração torna a amainar
E o mundo pode outra vez sossegar
Para finalmente deixar 
A vida em paz continuar. 

26 April 2022

A minha cidade 
É mais bonita 
Sob a chuva
Da Primavera
Quando a cortina
De gotas refrescantes
Nos acaricia espíritos
E semblantes
Rasgando o cinzento
Ameaçador e autoritário
Finos raios de sol
Desafiam um céu rabugento
Ainda estremunhado
E o arco-íris espreita
Por entre paredes molhadas
Cabeças no ar
E mãos ocupadas
Que se cruzam acarinhadas
Por um tempo
Que, naquele momento, 
Se fez mais terno e mais lento.



23 April 2022

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

A minha gata
Não é como a da Rosalia 
Não anda de Kawasaki 
Nem tão-pouco sobre tatami
Mas conduz naves espaciais
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Vive no limite do mundo
E come muita porcaria
E entre praias, foguetões
Tremores, tsunamis
Dilúvios e explosões
Outros fetos e suas crias
Despreocupada rodopia
Dançando livre ao vento
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
E nem o âmago dolorido
Nem o aconchego sofrido
Cápsula disforme exaurida
Bomba-relógio diferida
Lhe tiram brilho ou energia
Espírito egrégio
Girl magia
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
BOOM!!! 


Free falling

And then I fell for her
And all that is beautiful and poetic
And soft and feminine and kind
All the gentle spirits and creatures 
Wondering around the Earth
And I kept falling
And falling 
And falling
Free
Falling
In love.

18 April 2022


O amor é um comboio
Que passa depressa
Ou devagar
Ás vezes, encrava
Outras nem sequer pára
É aquele momento
Ou se agarra 
Segue-se viagem
Novas paisagens
Histórias, paragens,
Cores, imagens
Linguagens, aragens
Ou se perde
E ficamos a vê-lo 
Perder-se no infinito
Rumo a um ponto de fuga
Escuro e longínquo
Que deixa para trás
Apenas silêncio
E um eco vazio. 
Tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu...





17 April 2022

Chovo copiosamente
Ao deslizar da melodia
Que me escorrega pelo corpo
Até se despedaçar a meus pés
Braços caídos 
Pingando lamentos
Desalento molhado, gelado
Resta-me senão vertê-lo 
Em verso
Até que aqueça
E seque.

16 April 2022

Conhecer tão bem 
Os meus anseios e receios
Os meus amores e os meus temores
As minhas raivas e tristezas
As dores, as destrezas
Melancolias, incertezas 
Saber a que sabem os desfechos
As partidas e os regressos
Saborear saudades e desejos
Dormir entre aspirações e almejos
Sonhar soluções, desfrutar problemas
Rir dos meus próprios esquemas
E perceber que se hoje volto a amar
É porque continuo encantada
Com o universo infinito que trago
Por dentro e por fora 
Desta existência sagrada.



Pudesse eu abraçar-te
Para além das palavras 
Para além das nuvens
Aprender como se enlaçam 
Os corpos iguais
Provar o sal da tua pele
Afogar-me nos teus cabelos
Respirar em uníssono
Ao ritmo cardíaco
Dos nossos gemidos
Pudesse eu abraçar-te
Para além do tempo
E do espaço
E do oceano que nos separa
E nos amarra
Confundir pernas e lábios
Percorrer ondas e sulcos
Misturar murmúrios e sucos 
Pudesse eu abraçar-te
Para além desta ausência 
Que nos aproxima
Para além da surpresa
Que nos anima
Rirmo-nos juntas
E livres 
E chorarmos também 
Por voltar a ser meninas.


Chorar de amor 
Limpa a alma
Devolve-lhe a cor
A tua è verde
E azul
E vermelha e preta e branca
É a tua
Agora também minha 
Mais clara e salgada
Brilhante e infinita
Arco-íris em progresso
Estrela da manhã
A cantar aflita
Ao breu que deixa para trás
A chorar
E a limpar.

8 April 2022

Saudades de ti
Quando ainda aqui estás 
Ouvir-te cantar pela manhã
No silêncio da tua ausência vizinha
E fazer o luto do teu amor
Enquanto danças ao meu lado.



3 April 2022

A ilha encantada

Todo a maruja sabe
De certa ilha encantada
Lá bem adentro mar
Onde o canto da sereia inebria
O denso nevoeiro confunde
O vento incerto atrapalha
O rochedo escondido trama
O vulcão adormecido assombra
E a morte certa atenta.
Todo a maruja sabe
Mas vai na mesma.

 


Prisma

E é abrir o coração ao sol
E deixá-lo rodopiar ao vento
Transparente, límpido
Disparando cores
Em todos os quadrantes
E coordenadas
Mesmo as inevitavelmente condenadas.




Shut down, reassess and reset 
Whenever love frightens you more than STDs
Whenever form and norm grab your attention
Way beyond kindness or birds or trees or clouds...
Whenever other people, contexts, locations
Seem to keep disappointing and annoying
Whenever little everyday shit
Keeps getting in the way
Whenever time slips
Whenever you only know yourself
For the clothes you wear, 
The food you eat, 
The drugs you take,
The things you do.
Shut down, reassess, reset
Embrace your joy
Dance with liberty
And cuddle god.
You'll be fine.





1 April 2022

Sabedoria impopular

Já sei, já sei
O sentimento vai e vem
As palavras nada valem
O que importa é o momento
E o tempo tudo cura 
Já sei também
Que tenho em mim 
Todas as respostas
Como também tenho 
Tantos problemas
Estratagemas...
Oh e sei tão bem
Que a verdade não existe
Que o que conta é a intenção
E que o inferno está cheio das boas
Já sei - oh se sei
Que o pecado mora ao lado
Que o vento tudo leva
E que o que hoje era futuro
Amanhã será passado
Já sei e muito bem
Que o amor é uma tolice
E a paz uma utopia
Cada tolo com sua mania
- Oxalá nunca se perca a magia
Já sei, sei ainda
Que o corpo é uma prisão
E que a liberdade é uma ilusão
E que nada serve de consolo
Quando se parte um coração
E também sei, oh se sei
Que a terra é bem redonda
E que os astros, por vezes, se alinham
E o universo quase sempre conspira
Sabiamente relembrando
Que tudo o que já sabia 
De nada me valeria
Quando, por fim, chegasse este dia.





O amor no feminino 
É molhado e sem destino
O amor no feminino
É complexo e salino
O amor no feminino
É suave e pequenino
O amor no feminino
É terno e movediço
É inteiro e roliço
É confuso e assustadiço
É uma benção e um enguiço
O amor no feminino
É lixado
(Tal como no masculino
E em todos os restantes quadrantes).




4 February 2022

As palavras

As palavras são mantras
Seres misteriosos, primitivos
Sons e estalidos
Transformados em belos signos,
Cornucópias e rabiscos
Umas em pé
Outras deitadas
Umas mais sós
Outras acompanhadas
Lá se abraçam
E entrelaçam
Prometendo algum sentido
Mas em boa verdade
Não são mais que gemidos
Urros, sussurros e latidos
Uma algaraviada de ruídos
Sem fim e sem motivos
Mas que nos mantém todos unidos
E vai marcando o compasso 
Do tempo em que existimos.

O poema cagão

E aquele poema
Que era tão perfeito e tão belo
Tão ritmado, tão singelo
Mas não se pôde logo escrever
Porque não havia tempo
Porque ainda era cedo
Porque tinha que comer
Porque ainda estava no banho
Porque aquilo dá trabalho
É coisa que ainda demora
E só depois mais tarde
Quando por fim é boa hora
Não é que o poema se acagaçou
Não quis saltar para o papel
Fugiu dali pra fora
E nunca mais ninguém o alcançou?

As bengalas

Ia eu de passo ligeiro e ensimesmado
Quando me distraí 
Com um ramalhete de bengalas
Todo bem arranjado 
Através da vitrine que passava
Não resisti a contemplá-las
Pelo canto do olho cativada
Mas eis que ao retomar a direcção
O próprio pé fez confusão
Passou-me uma rasteira
E eu estatelei-me no chão
- Estava a pedi-las...

28 January 2022

Ser montanha

Deve ser bom ser montanha
Ali solidamente agarrada 
Àquela imensa vastidão
Aconchegada pelo azul sem fim
Majestosa
Sob o seu manto verde viçoso
Sempre acariciada 
Por nuvens e ventos
E pelos raios de sol e da lua, 
Pingos de chuva, trovões e nevões
Às vezes, sacudida por terramotos
Aluimentos ou escavações
Recortada por túneis, grutas,
Buracos, fendas e socalcos
Abrigo da vida que passa
Por todo o lado
Única e infinita.


The gift

"You've got mail"
She said
And I did
There it was
The slim bar
On the screen
Shining
Announcing a gift
That could not 
Be opened
Unauthorized 
It said
And there it was
All wrapped 
In love 
And frustration
Waiting 
Uninterested
In any of the above
Impassively misfit
As it inspired
To break the code
Start the flight
And find my way 
Into love.

27 January 2022

Dias

Há dias para ler
Há dias para escrever
Há dias para falar
Há dias para trabalhar
Outros para esquecer
Há dias de férias
Dias de paz
Dias de silêncio
Há dias incríveis
Há dias terríveis
Dias normais
Há dias a mais
Há dias que tais
Outros todos iguais
Há dias assim
Há dias sem fim
Há dias sem mim
Hoje, é um desses.