27 May 2023

Tao

A tua cabeça aos meus pés.
A minha cabeça aos teus.
O avesso do avesso do avesso do avesso
Misturado sem sentido como deve ser.
O descanso do guerreiro
Yang no regaço de Yin.
Acolhedora. Disponível. Maternal.
Os ziguezagues do amor desatento.
Perdidos na cama 
Como na vida.
Lânguidos. Aos Sss. Divinos.
Benção maior do universo em paz.
Amen. 


11 April 2023

Haiku à moda do Porto

O sol queima
O vento ri gelado
Caralho.

4 January 2023

Luzinhas azuis deslizando
Suavemente em sinuosos
Diagramas de cores
Que se repetem e multiplicam

Enquanto corpos se arrastam

Em câmara lenta

Desdobrando-se e dilatando-se

Gigantes que ainda agora eram do meu tamanho

Passeiam pela sala ondulante, oscilante

Alice do outro lado do gato diletante

Frio abrasador ou calor cortante

As pontas dos dedos dormentes, persistentes 

E o estendido repicar dos sinos

Ecoando pelas montanhas e pela pele

Flocos de algodão cercando a língua

Até deslizarem garganta abaixo

Em cascata espiral infinita

Lá fora, paredes de árvores e folhas 

Fundem-se e desdobram-se 

Em casulos de míticas figuras

Ora diabólicas, sinistras, daninhas

Ora pueris, divertidas, tolinhas

Demónios, girafas, rainhas

Dançam e riem por dentro e por fora

É a vida seguindo novo ritmo

Que afinal é o mesmo de sempre

Enquanto respiro pintas de leopardo

E, pela primeira vez, conheço de novo o meu braço.



22 September 2022

Poema de Ninar a Minha Velha

Há uma velha a nascer em mim 
Muito desejada mas ainda pequenina
Já cheia de maleitas e achaques
Muito dada às mezinhas e aos ataques
De risadas, esconjuros e disparates
Ela ainda se sente uma menina
Que põe a mão no chão
E põe a mão no coração
É uma velhinha querida e rabina
Dança à espanhola e toca concertina
Também dá meias voltas e levanta a saia
Porque do que ela gosta mesmo
É de andar com as outras na gandaia.
Agora também tenho varizes
Era só o que me faltava
Pois se já não bastava
A espondilite anquilosante
E sua dor excruciante 
Que percorre a espinha
De montante a jusante
Ou o raio do olho visgolho
Que vira o mundo de esguelha 
Salvo quando se acende centelha
Intenso clarão, relâmpago ou corisco
Fintando a maleita por trás da orelha
Eu devo é estar a ficar velha
Mas se me sinto ainda fedelha
Olha, afinal era só um cisco
E lá se acentua
A ligeira escoliose
Atiça-se a hérnia discal 
Destrói-se mais um bocado a lordose
E eis que salta mais uma protusão
Ao menos não há sopro neste coração
Acrescentam-se é os desaires, angústias e crises
Pois não é que agora também tenho varizes?

17 September 2022

O Teatro

O teatro é um amador
Caixinha de mistérios e surpresas
O derradeiro impostor
Recosto-me na escuridão
E deixo-me encantar
Ali posso tudo
Posso cantar e voar
Posso matar e berrar
Posso rir descontrolada 
Às gargalhadas
E até posso chorar
Com as vidas dos outros
Que ali são minhas também
E sempre sem me cansar
E no final ainda aplaudo
Faço vénias e encores
Desfaço-me em agradecimentos
Sorrindo aos espectadores
Depois saio altiva e sobranceira
Pela porta principal
Sem passar nos bastidores
E olho de esguelha
Quem pela rua despreocupado se passeia
Pobres ignorantes inconscientes
Que não se atrevem sequer a espreitar
Aquela meta-vida brilhante
Implosão contínua de glamour
Ali prontinha a rebentar com tudo
Onde se finge o que já era verdade
E nos convencemos do próprio engano
Qual labirinto infinito de trapaças
Em queda livre vertiginosa
De onde afinal nunca saímos
Porque mesmo antes de entrar 
Já lá estávamos a contracenar.

13 September 2022

O Período

Sangue viscoso e quente
Escorrendo pelas pernas
Lentos coágulos
Sujando lençóis e cuecas
Gastando o meio ambiente
Fechado em saquinhos 
De plástico estridentes
Desenhando espirais encarnadas
Nas águas paradas
Do banho, da latrina
E mais uma toalha ensanguentada
Fina e segura é um raio que me parta!
E o copo que aleija 
E nunca fica direito
E cola-se às paredes
E faz vácuo
E enfiou-se lá para dentro
Escapando ao contorcionismo
Dos dedos suplicantes
Mais um tampão
Oh não!
E o papel higiénico que se gasta?
E o juízo e a alegria
Tudo é miséria 
Tudo é desgraça
Porque o que é nojento
Não é o período
É o raio desta neura dorida
Que nunca mais me passa!