13 September 2022

O Final Feliz

Era uma vez uma menina
Bem esperta e rabina
Olho de pirata 
E nariz de bruxa
Que adorava histórias
Como as outras meninas
E como as outras meninas
Tinha as suas preferidas
Sementes voadoras
Belas adormecidas
Dragões solitários
Fadas trapalhonas
Príncipes mãos-de-tesoura
Sereias sem cabeça
Tudo o mais redondinho
E perfeitinho, esqueçam!
Como todas as meninas
Esta também cresceu
Aos ziguezagues e cornucópias
Uns dias bem disposta
Noutros com o período
Por vezes, enganada
Lá seguia em linha recta
Para logo se desequilibrar 
E espetar de trombas 
- A insurrecta!
Mas logo voltando
A voltear
As voltas da vida
O mar e mar
A ir e voltar
Serpenteando o azar
Para acabar a poisar
Num palácio de guloseimas
Onde se exaltavam banquetes
Celebravam festas
Comemoravam pândegas
E digladiavam teimas
Enquanto no jardim encantado
Dragões tresloucados
Punham ovos já cozidos
E pela escadaria encaracolada
Corriam gatos e vassouras
E fumos e cenouras
- Cenouras?!
Sim, cenouras e esqueletos
Aranhas em frascos
E comboios de vaca-louras
- E um príncipe?
Não, esses não moravam lá
Mas estavam as amigas
De nariz postiço 
E pálas em riste
Que enfiavam nos olhos
Sempre que a menina 
Se sentia triste
- E que mais?
E mais nada
E já bem chegava
Para grande final
Não estava nada mal
Até porque, pelos vistos,
A história ainda continuava
- Aplausos.




12 September 2022

O javali

Está aqui alguém!
A folhagem ofegante
Sacudindo agitada
O salto do susto
Valente coração
Aos pulos
Num clarão 
De lanternas
Em riste
Consegues vê-lo?
Passos pesados
Correm ao largo
Um ronco profundo
Do fundo do breu
Está ali!
Onde? Não vejo!
É um javali!
Atrás do tronco!
Faz barulho
Não desistas
Sai, bicho
Fora daqui
Tremem as pernas
Feixes de luz 
Agitados
A falta do ar
Urros e guinchos 
Em dança primordial
Na noite cerrada
Da serra 
Que encerra 
E acolhe
Todos os bichos.

11 September 2022

Limbo

Este meio de nenhures
Nem acima nem abaixo
Nem noite nem dia
Nem fêmea nem macho
Nem escama nem penacho
Esta terra de ninguém
Nem dura nem mole
Nem clara nem escura
Nem fria nem quente
Nem frágil nem resistente
Este não lugar
Cú de Judas
Que ninguém conhece
Mas por onde todos passam
Um dia
Hoje é aqui que pertenço
Sem saúde nem doença
Sem ausência nem presença
Sem maldade ou inocência
Sabedoria de sanatório
Para lá das portas do Éden
Afinal o que fica é o purgatório
Limbo malandro, familiar
Já que te encontro
Desta vez, deixo-me ficar
E observo a espiral infinita
Do teu tempo movediço
Do teu mar de sargaço e de enguiço
Ora apreciando a lenta viagem
Ora tropeçando e escorregando
Na voraz vertigem,
Que me engole inteira
Na minha própria rasteira
Fez dói-dói
Já passou?




10 August 2022

A Anita desviou a vida
Numa sexta-feira
Que não era treze
Nem fria nem triste
Era uma sexta-feira
De sol, de férias, de calor
Era uma sexta-feira
Cheia de cor e cheiros e sabor
E memórias das histórias
Sob as estrelas 
Longínquas, solitárias
Que já não lembro
Mais ainda imagino
O céu azul limpo
Reflectindo salgado 
No mar transparente
O corpo embalado pelas ondas
Peixinhos atrevidos 
Mordiscando os pés
Ai! 
Lambo o rosto molhado
Dói-me o coração
Porque a Anita desviou a vida 
Qual cortina incómoda
Ali à boca de cena 
Onde a terra acaba
O mar começa
E o poema aplaude e grita:
Fica, Anita, fica!  



para a Ana Luísa Amaral (1956-2022)


O Poema Inacabado

A vida é a água
A esgueirar-se pelas frinchas 
Da parede imaculada
Enegrecendo invisível
Até ao podre
São os pêlos brancos
Do gato vadio
Agarrados à malha preta
Do melhor vestido
É este mistério descontrolado
Desconcertante, cruel, desmiolado
Que nos inspira e atormenta
O quotidiano espiralado
O poema inacabado...

14 May 2022

Oh a poesia cândida
Entre comichões e aflições
Noites mal dormidas
Consumições
Pudesse ser eu pomada
Mezinha, remédio, unguento
Em vez de poeta apaixonada
Refém da lamúria e do tormento
E talvez este prurido recorrente
Estancasse sua penosa torrente
E não mais eu sucumbisse
A tão sarnento talento!


O amor se arrefece
Desaparece. 
É que o amor 
Quer-se quentinho
E aconchegado
Cheio de carinho 
E bem tratado
Não encostado
Abandonado
Enxovalhado
O amor precisa 
De mimo e de sal
Requer atenção
Dedicação 
Devoção íntima 
Universal 
Caso contrário, arrefece
Enfraquece
Esmorece
E desaparece
- Mas não acaba.