30 September 2021

O amor é o derradeiro exercício 
De humildade perante a vida
A poesia seu agraciado reconhecimento
Relembra-nos que, mesmo quando não dançamos, 
Há-de sempre haver a música... 





28 September 2021

Poesia atómica para o amor circular

A poesia é uma espécie de ecoponto,
Um transe de ayahuasca,
Um fungo decompositor.
Elixir regenerador,
Trip psicadélica estonteante,
Bonança misericordiosa
Depois da borrasca nauseante.
A poesia é um motor de combustão:
Entra gasolina, explode emoção.
A poesia é uma energia renovável,
Sem forma nem cor nem cheiro,
Altamente reciclável.
É incêndio de verão implacável,
Com o seu rasto negro e seco, 
Feio, fétido, fértil.
A poesia é uma flor
De Hiroshima 
Arrancando aos ossos a dor
De estar vivo sem amor
A circular...
- Catrapum!





A encruzilhada

Quando já nem a poesia nos vale
Nem o amor nos basta
Nem o alimento sacia
Nem o colo alivia
Quando nem a roupa cobre
Nem o sol nos aquece
Ou a lua alumia
Quando nem a oração acalma
Ou o santo acode
Quando nem a canção enternece
Nem o espírito se eleva
Quando o dia já nem merece
E a noite só entorpece
É porque chegamos a uma encruzilhada
Onde não há para perder mais nada
Resta sentir a bússola do coração
E continuar a caminhada 
Naquela direcção...


19 September 2021

Era uma vez um onanista
- palavra mais esquisita.
Vá ver ao dicionário!
Mas não era um onanista qualquer.
Não, o nosso era um onanista literário.
Só escrevia por puro prazer
Sempre que podia
E não tinha mais o que fazer.
De pena alçada e papel em punho
Lá batia mais um texto
Rabiscava outro gatafunho.
E entre prosas e poemas,
Muitos rascunhos e alguns esquemas
Lá acabava por se vir,
Ora mais voraz ora mais contido,
Tantas vezes sem soltar sequer gemido.
E era assim que, naquele agradável torpor,
Encontrava o santo remédio
Para a sua mais profunda dor.



14 September 2021

Nas montanhas da melancolia

Nas montanhas da melancolia me perdi.
Entre montes e vales, colinas e precipícios,
Serpenteando as suas curvas sinuosas, 
Sulcando as suas fendas profundas,
Mergulhei nos seus contrastes,
Banhei-me nas suas paisagens.
Perdi-me entre as cores, os cheiros e sabores
Daquele passeio inebriante, interminável,
Entediante, enjoativo, torturante, admirável...
E das encostas roliças 
Aos seus túneis movediços,
Naqueles vulcões de esperança adormecidos,
Me deixei seduzir e conduzir,
Parando às vezes só para sentir
A plenitude da tua ausência,
O calor da tua distância,
O conforto do teu silêncio,
O amor da tua indiferença.
E assim, restabelecido,
Continuei a passear perdido
Naquelas montanhas de melodia,
Belas sereias verdejantes, 
Deslizando sob meus passos agonizantes,
Continuamente sussurrando 
Promessas eternas de melancolia.




13 September 2021

A barragem

Até que finalmente 
Decidi abrir as comportas
E deixar toda a aquela água jorrar.
Até ali, estivera calma, tranquila,
Quase imóvel, 
Ignóbil.
E, no entanto, tornou-se casa,
Fonte de vida, lugar de alimento.
Da sua tranquilidade 
Brotavam ecossistemas inteiros,
Convincentes artifícios
Com todas as suas camadas:
Predadores e parceiros,
Empenhados em manter 
Aquele equilíbrio estático
Tórpido
Antipático
Pouco empático.
Engenhosa construção
A ferro e fogo,
Cheia de razão.
Até que finalmente 
O choque da tua ausência
Provocou tamanho aperto no peito,
Tamanho nó na garganta,
Tamanha volta à barriga,
Que eu perdi a resistência.
Implodi o sentido da razão,
Abri as comportas do coração,
E deixei toda aquela água jorrar
Sem saber onde iria parar
Sem calcular o quanto 
Nos poderia ainda magoar
Sem perceber
O quão destrutiva, implacável, inexorável
Poderia ainda vir a ser.
- Um dia, ainda me afogo em mim.
Falta tanta água correr...

A nostalgia deu à costa
Desenrolada pelas ondas do mar
E, assim estendida pela orla da praia,
Inundou-me de sal o olhar.

- verão 2021, na praia de Fuzelhas
"Estão ali golfinhos!"
E a vida toda fez uma pausa
O contrato que nuca mais chega
O processo interminável
O salário que continua em atraso
A segurança que rejeito
Os engates que não conheço
O email por responder
A advogada que não atende
O escaldão que quase apanhei
A coluna que ainda agora doía tanto
O telefonema que ficou por fazer
A leitura que deixei a meio
A dieta que ia tão bem
A proposta que lá seguiu
A rede sempre a falhar
A toalha cheia de areia
O vento que parece amainar
As algas a atrapalharem as braçadas
Tantos tormentos, consumições, angústias, sonhos, contradições...
Nada mais importa.
É que estão ali golfinhos
E tudo o resto pode esperar.

- verão 2021, na praia do Barril


Má Memória

Quando lá volto
Está seco.
Aquela porta escancarada
A cama ainda quente
A escadas do prédio,
A cheirar a mofo,
Ali mesmo aos meus pés.
A ânsia de correr atrás
E o medo daquele silêncio
Que se entrava sufocante
Por aquela porta escancarada
Qual bocarra desdentada
Pronta para me engolir.
Fechei-a.
E atrás dela
Verti garrafas
Rasguei recordações
Calei o silêncio aos gritos
Até ficar sem voz
Sem força 
Sem chão
Sem memória.
Agora, quando lá volto
Está tudo seco
E até dá pena.


- em 27/05/2020, na aula de dramaturgia