26 October 2024

Gratidão

À centelha 
Que decidiu acender
Em mim para
Desde então,
Insistir em existir
Numa casa de xisto
Onde ainda vou morar,
Sentir a vida
Saborear
Essa terra húmida
E a pureza do ar
Arrefecendo
Os meus pulmões
Quentes, latentes
Quais alforrecas 
A ondular 
No azul imenso
Do mar.
A esse ritmo
Esse pulsar
Essa extraordinária 
Máquina 
Sempre a funcionar
Sem precisar
Que ninguém a controle
Ou reclame
Mesmo quando
Me esqueço 
De a cuidar e amar.
Ainda assim,
Ela continua
Sem parar
Até ao dia
Que ela escolha
Para me libertar.

Querida Bia,
Soube que desististe. Imagino que estivesses muito cansada. Que pena que não nos voltamos a cruzar... Talvez tivesse feito diferença. Oxalá tivesse! Se calhar, fez... Na certeza de te sentir por perto, quero que saibas que a tua luz fará sempre parte do meu brilho. Espero que tenhas levado um pouco da minha contigo também. E que ela contribua para alumiar essa travessia misteriosa que decidiste iniciar mais cedo - embora essa escuridão deva ser bem mais acolhedora do que a que aqui, às vezes, nos engole. Quando chegar a minha hora, espera-me à porta e dá-me a mão. Sê minha guia. Até lá, vem visitar-me ao bosque de vez em quando. Dancemos juntas, entre a vida e a morte, com as árvores, os ventos, os bichos e os regatos, levantando a poeira que somos, rodopiando em círculos até nos dissolvermos no tempo, no espaço que somos. Abraço-te com o coração.
Até já, estrelinha irmã. 

30 September 2024

Maria, Maria
Cheia de graça 
E de alegria
É um som,
É um dom,
Trago de natureza 
Sopro de harmonia
Ritmo da beleza
Uma certa magia
Um sonho
Um milagre 
Um encanto
Uma bruxaria
Eterno acalanto
Lento
No canto 
Do fim do mundo
Naquele segundo
Infinito particular
Aquela viagem
Mergulho frio no mar
Até à outra margem
Vegetação selvagem
Colapso dos corpos
Fusão dos tempos
Aquele cheiro
Aquele tremor
Transcendência em flor
Sementes de amor
Ouro da terra
Fêmea que berra
Sob a força inspirada
Da natureza encharcada
Maria, Maria
Essa estranha mania 
De ter fé na vida.

19 September 2024

Ai

Ai, o teu pescoço
Grosso
A vida a partir de um caroço
Lenta
Sumarenta
E sem osso
O teu cheiro
Esse longo cabelo de guerreiro
Brilhando soalheiro
Sobre o meu corpo lampeiro
E o teu olho vago
De mago
Invocando os pássaros
E os espíritos 
Na borda do lago
O afago
Da tua mão macia
Na minha bacia
Num abraço forte
Rumo ao Norte 
Para mais uma
Pequena morte.

31 August 2024

O Anjo e a Bruxa

Estava um anjo entediado
Na sua nuvem deitado
Cansado da pandeireta 
Da harpa e da corneta
Quis distrair-se um bocado
Foi então que avistou
Uma bruxa atarefada
Toda frenética e despenteada
Entre plantas, penas e cristais
Ratos, sapos e outros animais
Correndo de um lado para o outro
Rodopiando com seus ancestrais
“Oh bruxa, porque não páras um bocadinho?
Sobe à minha nuvem
Faço-te aqui um cházinho!”
A bruxa nem queria acreditar
Realmente estava cansada
Fazia-lhe bem parar.
Largou gatos e caldeirões
Deixou a meio simpatias e poções 
Montou na sua vassoura
E lá saiu a voar
Atravessando fronteiras pelos céus 
Sobre montes, praias e girassóis 
O que depois se ali veio a passar
Entre nuvens, estrelas e lençóis
Não é da vossa conta
Mas vou mesmo assim contar
Foi milagre
Foi magia
Foi maravilhoso! 


Poema para os Homens

Vocês que nos maltrataram
Desprezaram, rejeitaram
Ignoraram, menosprezaram
Vocês que nos odiaram
Reprimiram, subjugaram
Confinaram, prenderam
Insultaram, violaram
Dominaram e até queimaram
Vocês que nos usaram
Manipularam, mal-amaram
Vocês que nos afastaram
Vocês que nos negligenciaram
Vocês que nos amargaram
Ultrapassaram e desconsideraram
Vocês que nos traíram
Enganaram e mentiram
Vocês, homens,
Também nos amaram
Apoiaram, admiraram
Motivaram, inspiraram
Protegeram, ampararam
Vocês também nos abraçaram
Beijaram, lamberam 
Acariciaram, animaram
Distraíram, desafiaram
Aconchegaram e mimaram
Vocês são nós
Todos somos um
Do avesso do avesso
Ou nem por isso
Haja perdão
Haja compaixão
Haja coração 
E alguma diversão 
Que nos amemos sempre
E para sempre
Assim já é!


27 August 2024

Veio num barco 
Sem remos
Sem velas 
Sem avisos
Ancorado num jardim
À beira mar plantado
Camuflado entre girassóis
Tomates e melancias
Banhos de mangueira
Auroras de gatos
E ratos e musaranhos
E outros presentes mal fadados
Miradouros de borboletas
Enterrados na curiosidade 
Do lodo 
De iodo 
Que acaricia
Qual pena macia
À chuva
Ao sol
Ao vento
Ao tempo...
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Disse que me cortava a cabeça
Ameaçou mandar-me pelo ar
Explodiu com o meu coração
E cortou-me a respiração
Esganada pela gargalhada
Que larguei a correr 
Para o mar.